terça-feira, 22 de dezembro de 2009

NATAL, HOJE COMO HÁ CINQUENTA E OITO ANOS, COMO HÁ DOIS MILÊNIOS

"É preciso não esquecer nada."
..."é preciso não esquecer de ver a nova borboleta`
É preciso não esquecer nada
nem o céu de sempre."
(Cecília Meireles)

Desde criança, a noite de 24 de dezembro era uma mistura, uma sensação feita de muitas outras.

A esperança, a ansiedade dos presentes, o ensinamento de que a tudo se deve agradecer, mesmo quando não tem nada a ver com o que a gente queria.

Pois é, o Natal na minha mais tenra infância tinha cheiro de pó-de-arroz, de massa de batom, tinha cheiro sim, de fatias de pão untadas de ovos batidos, embebidas em leite de côco, fritas e açucaradas, polvilhadas de canela. Hummm...... uma receita, a rigor, tão mestiça como o Brasil e sabor tão prazeiroso quanto as gargalhadas de meu pai, que anunciava festeiro as maravilhas das fatias e ele falava, falava, e ficava vermelho, de olhos brilhantes ao fazer a malícia de salão. É o seguinte: em casa, chamávamos esta gostosura de "fatias douradas", mas, ... ele se deliciava em lembrar, que sendo uma iguaria originalmente portuguesa, lá em seu nascedouro, era conhecida como "fatias de parida", e no Brasil, são também conhecidas como "rabanadas". Isso era um pouco do que subia no ar junto com o odor forte de azeite fervente.

Além do pequeno terraço, outras sensações faziam festa nos meus sentidos infantis. Gritos de crianças soltas, pregões de vendedores de guloseimas, a sineta do pipoqueiro, o triângulo do vendedor de cavaco, as buzinas e o ronco dos automóveis circundando a praça.

Em noites mais amenas dava para ouvir grilos, sapos, mas, na véspera de Natal, os insetos e pequenos batráquios como que silenciavam em respeito ao estrépito da euforia dos humanos.

Mesmo sendo filho de família protestante, era comum recebermos a visita do pároco local: o velho Monsenhor Odilom Lobo, cuja batina cheirava a lavanda misturada com naftalina, que sempre comparecia à casa dos "irmãos separados", como costumava chamar a nossa família.

Eu gostava de ouvir o "angelus" e os cantos de procissão. Morávamos a cem metros da matriz, Mas, isso eratudo. O limite do permitido. Nada além. Os comentários familiares à devoção mariana e mesmo ao Menino Jesus, melhor não contar.

Assim, começaram as minhas primeiras reflexões sobre o Natal. nos últimos 58 anos a vida não tem simplificado essas vozes natalinas nem suas indagações decorrentes. Aliás, prefiro mesmo as interrogações. As respostas com aquele odor azedo de certeza e semblantes inflamados me fazem estremecer, cada dia mais. Pegar carona sem pedir nem mesmo licença à fé cristã e a sua festa mais alegre para proclamar "certezas" pessoais e afirmações adjacentes, convenhamos, não é elegante. Mas, censurar não seria igualmente democrático. Portanto, hoje como Judéia de dois milênios atrás, vicejam as controvérsias, estremecem Herodes sobressaltados e perversos, bradam novos e antigos Barrabás.

Em meio a tudo, furtivos, sussurrantes, humildes pastores se prostram, adoram absortos na própria simplicidade ao lado de ricos e sábios magos , por alguns chamados de reis, que ali se juntavam diante da encarnação do verbo.

Longe de mim insinuar respostas na lembrança dessas cenas. Melhor, saudáveis recordações.

Assim, as melhores impressões da Noite de Festa ficam´por conta da sinfonia de risos e conversas das famílias voltando da missa na Praça de Casa Forte, que foi literalmente meu berço; a performance magistral da "Suite Quebra Nozes", um conto natalino sobre a visão russa (do século XIX) do mundo. Algo que eu somente viria a entender já na idade adulta e ... bem, o indefinível astral de amor que se apodera de quase mundo e que senti mesmo nos Natais frios e cheios de perigos dos anos de chumbo, longe de casa, cheio de ideais e delírios na cabeça e uma obstinação entre os dentes para que, ... para que não importa agora. Depois dos dias e noites no deserto, não vamos cair na tentação de escorregar no lodo das certezas. Muito melhor, é resgatar lembranças que podem gerar brilho nos olhos, romance (mesmo vinte e oito anos depois) e de mãos dadas ir visitar vitórias-régias, aningas, carolinas floradas, acácias em festa. Muito melhor ainda, é seguir os versos de Cecícilia Meireles e "não esquecer nada" para ser feliz.

Casa Forte, 22 / 12 / 2009
Marcelo Cavalcanti
81-92482399 - cavalcantimarcelo1948@hotmail.com




















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