segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

ANOTAÇÕES DE JANEIRO
(O mais longo dos meses)
Escrevo enquanto me debruço  sobre as memórias da campanha eleitoral de 1982, o tempo do sonho, do que viria a ser uma nova república, democrática, com direitos civis fertilizando a vida  da sociedade.
Isso se mistura com a sensação de viajar na parte de trás do ônibus. Algo que quase nunca acontece. É como se fossem universos alternativos. O pequeno devaneio acaba na esquina da Rua Sete de Setembro. Dali, para as calçadas da Dantas Barreto e a busca da missa das doze horas. O Capítulo Provincial dos carmelitas empurra minha procura para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.
De presbitério escuro, altar entalhado em madeira apenas envernizada, a conhecida Igreja do Rosário exibe um barroco sóbrio (se assim é possível comentar). O excesso aqui fica por conta dos detalhes. As minúcias se estendem aos fiéis e os modos como interagem com o terço, com a adoração e a sociabilidade religiosa.
Coisas de um janeiro particularmente longo porque além dos trinta e um dias, este ano dá para respirar neste intervalo de festas e, quem sabe, haverá muitas máscaras da nova presidente no carnaval. Por falar em máscaras, o que não é, no semblante presidencial? Nada maldoso. Máscara é persona, papel social, vem da forma grega clássica de ver o comportamento das pessoas em suas vidas porta a fora.
Depois do tempo comum, talvez saibamos mais sobre as personas que compõem o substrato psíquico da nova titular do Planalto. Até lá, é aconselhável nos contentarmos com a observação da mulher do banco lateral, que veste uma calça jeans, onde o “strech” não ajuda muito e não dá para se ajoelhar com ela. A blusa de malha sintética justa e os cabelos compridos muito alisados contrastam  com os lábios espessos e os olhos amendoados, velados e ágeis. O resto é fácil de perceber. Mãos excessivamente tratadas, sandálias altas de marca, tudo muito cuidado, até a bolsa cinza-prata. A mulher do banco lateral é uma figura barroca no estilo e no gestual da segunda década do século XXI. Padrão típico de um contexto de centro do Recife, ao meio-dia de uma sexta feira.
As manchetes de jornais alternam a catástrofe da será fluminense e os resultados do futebol local. É mais cômodo ser blogueiro do que ser editor de primeira página. Blogueiros podem comentar sobre o clima de férias verânicas, que permeia cidade, sem justificações obsessivas. O país navega em velocidade de cruzeiro apesar da tromba d’água que se abateu na região serrana do Rio de Janeiro. O desastre e seus dias seguintes abarrotam a mídia.
Melhor assistir “Six feet under”, na madrugada. Na minha modesta opinião, o melhor seriado da tevê aberta dos últimos tempos, mesmo fazendo “merchandising” descarado da “Sony”, “Nissan” e da “Budweiser”. Pois é, a nova televisão americana vende aparelhos de TV, carros e cerveja, enquanto discute relações, drogas, sexo, sentimentos, morte, valores, etc.
Ouvir pássaros cantando em um amanhecer nublado que realça a copa das acácias é aparentemente desconcertante.
O cinza sem tom definido de tempo chuvoso paira no firmamento.
A pouco mais de oito graus do equador, poucos meses escapam do verão tropical, contudo, o “stress” do lazer compulsivo, porque é janeiro, marca em amarelo a palavra “verão”, mesmo quando ele não acontece ao amanhecer.
O dia é uma promessa que pode ser incentivada com um bom caneco de café com “bolo bacia”, também chamado de “bolo de saia”, o que é muito imaginativo.
O discurso de Marcos Freire (a História foi madrasta com ele), no lançamento de sua malograda campanha ao governo de Pernambuco em 1982, foi como um relatório de agência econômica. Ele achava mais importante falar para os militares no poder, que não iam votar nele, que empolgar a massa de eleitores presente no Ginásio do SESC de Santo Amaro. Foi derrotado por si mesmo e não deu para ser feliz, mesmo sem ódio e, supostamente, sem medo, que era seu bordão de campanha.
Os meios de comunicação disputam quem anuncia primeiro o macabro “ranking” progressivo de mortos do aguaceiro fluminense e ainda, noticiam as avaliações da ONU como se fossem medalhas para o nosso mega desastre. O fato real é que um documento extenso, de 27 páginas, foi entregue à Organização das Nações Unidas, a alguns meses, e nele, o governo brasileiro declara que o país não estava e não está preparado para enfrentar grandes catástrofes. E a Exma. Sra. Presidente disse no Rio, que morar em local inapropriado no Brasil é a regra e não a exceção. É uma meia verdade que, proferida por alguém que faz parte do governo há oito anos, deixa de ser uma denúncia e parece ser outra coisa...
Os amores de um grupo de jovens inteligentes e atípicos desfila na tela da Bandeirantes, no início da madrugada. O clamor pop gritando “I Will survive!” ecoa de uma festa próxima.
O vento inerte se recusa a tocar as folhas, querendo um silêncio  que sobrevoa alheio. Todos os sons são irrelevantes quando o instante  é vazio e tenso como costumam ser as vésperas desconhecidas. Anotações de um janeiro que escorre comprido, lento e inexorável.
O fim de semana acabou. E com ele o visgo espesso da ansiedade.
O ministro Assessor Especial da Presidência da República e coordenador do programa de governo da Sra. Presidente confessa que os chineses chegaram a tentar fazer no Brasil, o que já fazem na África e em alguns países asiáticos, que é “exportar” lotes fechados de operários (as vezes presidiário, condenados a trabalhos forçados) para serem escravos em seus empreendimentos. Uma prática odiosa e muito perigosa porque ameaça e fere a soberania e dignidade dos países importadores destes “contêiners” de infelizes. Este professor de História, que emplaca o nono ano no governo, não é um exemplo de virtudes, mas, ao menos neste novo momento não precisa mais ficar justificando as metáforas grotescas e peripécias histriônicas que eram uma marca pessoal do ex-chefe de governo. Todavia, conhecendo a versatilidade retórica (e habilidosa) do Sr. Marco Aurélio Garcia, lembro os versos do rock nacional dos anos oitenta, na voz de Paulinha Toller: ...”e no balanço das horas tudo pode mudar”...
E tem mudado mesmo. O Irã dos aiatolás, que apedreja e enforca mulheres, foi acusado de proibir os livros de Paulo Coelho e negou oficialmente. Não tenho afinidades literárias com o escritor, porém, proibir suas histórias seria (ou é) um surto de paranóia obscurantista aguda à moda oriental.
As máscaras tendem a mostrar uma vocação irresistível para os excessos. Algumas são cuidadosamente inacabadas como se a vida fosse (sempre) um improviso. Outras tecem detalhes e até se reproduzem em pequenas mudanças, simples nuances, que desenham movimentos ou a ilusão deles, como se cada momento fosse um ensaio, a véspera ansiosa do que pode apenas vir a ser. Alguns instantes podem ser vésperas (se forem tratados como tal) como determinadas manhãs, como certas segundas feiras.
Casa Forte, 14, 15, 16 e 17/01/2011
Marcelo Cavalcanti
(81)93195627  -  cavalcantimarcelo1948@hotmail.com

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